Fazia tempo, talvez seis meses, que o velho moinho não dava sinais de querer medir forças com o vento, no planalto de S. João das Lampas, o que me fez concluir que o Victor Hugo, o moleiro, deveria estar doente, pois ele, apesar de estar na casa dos oitenta, nunca deixava de ir pôr o moinho a trabalhar. Gostava e entendia bem daquela arte de fazer a farinha - e caprichava - pois sabia que era um dos últimos moleiros de um País rendido ao comodismo das energias fáceis. Só mesmo quando não podia é que não ia até ao moinho herdado do seu tio, Ti Toino Estêvão, que ainda conheci e vi trabalhar, nos meus tempos de criança. Passava horas a ajudá-lo e a conversar com ele, enquanto as minhas ovelhas pastavam nas imediações e ele ia limpando o trigo ou ensacando a farinha.
Todos os moinhos das redondezas – e eram muitos – pararam, pois, com a electrificação da zona, criaram-se as moagens, que lhes tomaram o lugar. O Victor Hugo sabia que, com a evolução, a sua subsistência não poderia ficar dependente do rendimento de moleiro (que, nos meios rurais, foi uma das profissões mais rentáveis - e nem sempre considerada das mais honestas: “muda de moleiro mas não mudas de ladrão”, dizia-se). Ainda chegou a utilizar uma “engenhoca” ligada ao tractor, que fazia girar as mós sem precisar do vento e sempre lhe rendia mais alguma coisa. Mas aquilo descaracterizava o moinho e ele entendeu voltar ao velho sistema.
Em boa hora o fez pois o Parque Natural Sintra-Cascais concedeu-lhe uma ajuda financeira para o fazer, reconhecendo o elevado interesse paisagístico do moinho. Pena foi que, passados uns anos e precisamente quando a ajuda se revestia de maior importância, tivesse resolvido cancelar essa mesma ajuda, continuando, no entanto, a considerar o moinho nos roteiros e esperando que o Victor Hugo, continuasse a aceitar visitas a e dar todas as explicações sobre o seu funcionamento. Sabia que não ganhava nada com isso, mas, por brio e por estar ciente de que era um dos últimos veículos de um conhecimento com os dias contados, continuou, com a mesma disposição e disponibilidade a aceitar inúmeras visitas de grupos de alunos das escolas ou de simples visitantes.
Fui encontrá-lo à porta do moinho, sentado na “tripeça”, cabisbaixo, desanimado. Com a saúde e com as partidas da vida. Mas bom conversador como é, deu para estar ali, algum tempo a ouvir as suas recordações boas e más. Tinha desfraldado as velas mas não tinha posto o moinho a trabalhar. Tinha estado internado e sentia-se fraco. A função implica muito mais habilidade do que força física, mas, mesmo pouca, sempre é preciso alguma e essa faltava-lhe. Disse-me, com mágoa, que não iria voltar a pôr o moinho a girar !
Muito resistiu ele e, por muito que nos custe, ninguém tem a obrigação de, por si só e sem qualquer contrapartida, manter viva a história da comunidade. E ele fê-lo ... até poder.
Obrigado, Victor Hugo !