Falava-se que um tal “Trail” havia montado o cerco ao Castelo. Quase oito léguas era o seu tamanho (!) e poucos aqueles que se dispunham a fazer-lhe frente. Era temível a sua fama, mas o “alcaide”, homem habituado a pelejar em outras paragens contra inimigos semelhantes, tinha lançado o apelo à sua gente. Foram muitos os que responderam, pelo que, naquela noite e à hora marcada, centena e meia de "guerreiros" concentraram-se na praça para ouvir as últimas instruções do "capitão" e se lançarem para fora da muralha, destemidamente determinados a afugentar o "inimigo".
Houve até quem reforçasse a sua coragem com uma “ginjinha”, grande especialidade da Vila, e ouvisse palavras de estímulo por parte das simpáticas vendedoras que, atrás de pequenos quiosques de madeira que ladeavam a Rua Direita, apregoavam o melhor nectar e o davam a provar a quem passava.
Ao sinal, (que mesmo sendo um simples estalido, tinha o efeito sonoro e bélico de um toque de clarim) toda aquela massa humana, saía em bloco pela porta sul do Castelo, para se lançar naquela aventura na noite, em busca... não se sabia bem de quê. Era grande o espanto de quem via passar aquela formação em que cada um levava o seu “archote” na fronte, qual unicórnio luminoso, que tornaria visível os trilhos e não trilhos, por onde se deveria passar, para cumprir as instruções da "chefia".
Bom.... feito este “retrato” (já sabia que não me aguentava muito tempo neste “registo”) passemos ao relato deste TNLO.
Cerca das 20,30h, junto à entrada principal de Óbidos, nas “Portas da Vila”, até parecia que tinhamos marcado encontro, pois ali afluiram muitas caras conhecidas, que hoje assumiam a condição de “trailers da noite”. Foi aí que jantámos, após o que nos encaminhámos para o interior daquela relíquia urbana da idade média, onde, na praça principal estava montada uma tenda que era o Secretariado da Prova. Levantam-se os dorsais, esclarecem-se dúvidas, é feito um “brieffing” e é dada uma partida simbólica, para que, todos corrêssemos agrupados até ao exterior da muralha . O Jorge Serrazina e o António Miranda “punham travões” na coluna pois a partida efectiva só iria ser dada lá fora, o que aconteceu logo que parámos.
Frontais a iluminar o caminho, o pelotão rapidamente se desfez em pequenos grupos, que se colocavam em fila indiana sempre que se estreitavam os trilhos. Fui tentado a olhar para trás várias vezes para ver o efeito de tanto “pirilampo” na escuridão, mas a prudência aconselhava-me a dar mais atenção ao solo que pisava. Os que iam à minha frente – a maioria – destacavam-se não pelos frontais (que projectavam a luz para a frente) mas pelos reflectores que tinham nos sapatos ou no equipamento. Havia-os de vários tipos e o efeito era engraçado. Tentei não me atrasar em relação a um grupo de 6 atletas, para ver se não ficava sozinho na altura em que iamos entrar na floresta, onde os caminhos não estavam desenhados e qualquer desatenção poderia fazer-me sair da rota que estava assinalada por fitas vermelhas (mas que não eram reflectoras) e por setas (essas sim)., Embora soubesse que os companheiros do grupo (de que conhecia o Duarte e o Luis Oliveira) têm um andamento muito superior ao meu, achei que conseguia acoompanhá-los. No 1º abastecimento (10km) enchi a garrafinha de água que levava na mão (e que foi comigo até ao fim) e prosseguimos, agora a descer até às margens da Lagoa. Uma 1ª dúvida sobre o caminho a tomar, mas lá atinámos. O facto de o grupo ter crescido –já éramos mais de 12- ajuda muito nas situações duvidosas.
Os quilómetros iam passando (e sempre assinalados de 5 em 5). Entre os 10 e os 20Km fiquei novamente sozinho, pois receava ir com quem me parecia demasiado rápido, mas também não queria ir demasiado lento, pois também sei que o tempo de corrida só por si, tambem causa “estragos”. E lá fui passando por alguns que não se aperceberam a tempo que andavam em “más companhias” e já começavam a pagar o esforço (Estás bom, Jorge Pereira ?)
Na praia, o abastecimento dos 20Km. Aqui, passei eu pela grande Glória Serrazina, verdadeira referência em provas desta natureza e pensei que até não ia muito mal, pois ainda me sentia seguro. Seguia-se um troço de corrida pela areia solta e depois... a subida da duna ! Aqui, por cada passada de 50cm que déssemos apenas progredíamos 20 ! E nunca mais chegava lá acima. Talvez uns 30m à minha frente (neste caso, acima de mim) ia um grupo de 4 ou 5 atletas e eu pretendia chegar-me a eles. Quando finalmente chego ao cimo da duna, não vi ninguém! E agora? Havia ali um pequeno largo com várias saídas e eu sem saber qual é que devia seguir, pois não encontrava fitas nem setas! Vou esperar por quem vem lá para trás, ou meto-me por onde me parece mais provável ? Estupidamente, fui pela 2ª opção e, à medida que fui avançando, estranhava não me aparecerem sinais onde deveriam aparecer. Cheguei a uma estrada de alcatrão, talvez a uns 300m! Vi que o melhor era mesmo retornar ao cimo da duna, onde vinha aquele primeiro grupo em que eu me tinha integrado (do Duarte e do Luis Oliveira). Sem ver o sinal que deveria ter visto quando lá passei a 1ª vez, limitei-me a seguir o grupo e entrar, de novo, na corrida.
Seguia-se a parte mais perigosa do percurso: piso ondulante, de areia, com pequenos arbustos e raizes a atravessarem-se entre as passadas e à direita, ali a pouco mais de um metro, o precepício para o mar que “rosnava” lá em baixo, metendo respeito! (Oh Sr. Serrazina, Oh Sr. Miranda : não sendo aquela passagem nenhum trilho definido, não poderia ela ter ficado um bocadinho mais afastada de tão perigosa linha?Merecem nota máxima em tudo, menos nisto ).
Os sapatos estavam cheios de areia, mas não ia parar, porque não queria ficar sozinho pois já tinha tido uma má experiência.
No abastecimento dos 24km, aí foi para relaxar um bocado: tirei a areia dos sapatos, bebi água, enchi a garrafa para o caminho e comi melancia que nem um desalmado. Tão bem que me soube! Uns demoraram-se pouco e arrancaram; eu esperei por alguém que, afinal, parecia que vinha, mas não vinha! Conclusão: “alone again, naturaly”. Os da frente tinham “desaparecido” todos e de trás há uma luzinha que se vem aproximando de mim e que me diz qualquer coisa sobre S.João das “Rampas”! Vi logo que era alguém que me conhecia. Era o Manuel Azevedo e, em corrida ou a passo quando o declive era acentuado, lá fizemos alguns quilómetros juntos. Juntaram-se a nós outros atletas, mas quando chegámos ao alcatrão, o Azevedo avançou com outro companheiro e perdi-lhe o rasto. Os outros acabaram por ficar para trás de mim.
30Km. As pernas começavam a “acusar” um bocadinho e obrigavam-me a uma determinação mais forte. O piso agora era bom: caminho de terra batida, completamente plano. Passo por alguns atletas que iam a andar e que não se preocuparam nada que eu os ultrapassasse.
Último abastecimento : perguntei quantos km faltavam: 5 ou 6 - diz-me a miúda !
Estávamos na fase de aproximação ao Castelo! Uma aproximação lenta, é certo, mas era aproximação. Sentir isso punha-me confiante. Curiosamente, vou ganhando posições a alguns que tinham sido mais “atrevidos” que eu. Chegado à passagem de nível, o último grande desafio: subir toda aquela rampa em escadaria, para finalmente “conquistar” o Castelo. A passo, claro está, pois se me contassem que naquella fase alguém ousaria subir aquilo a correr, eu não acreditaria (mas parece que houve!). Já junto à muralha, uma outra escadaria, esta com corrimão de corda, que muito ajudou a transpô-la. A cota mais alta estava atingida. Só faltava contornar a muralha por alguns metros e entrar triunfalmente naquela portinha em ogiva, que parece um nicho de santo, que serviu de excelente enquadramento às imagens que o Orlando Duarte captou.
Agora só era preciso respirar um bocado, estabilizar o “equilíbrio” gástrico esperando que passassem as náuseas fugazes (minhas companheiras inseparáveis nestas corridas mais esforçadas) e dirigir-me para a mesa grande cheia de coisas apetitosas. Perguntei a alguém o que é que era “aquilo” que estava num tabuleiro !? Quando me respondem que era melancia, é que eu tomei consciência que qualquer coisa não estaria a funcionar bem, pois não tinha reconhecido aquilo que mais me apetecia. “Abanquei “ ali como que em “penitência” por tamanha ingratidão e só não comi mais por “medo” de ter que a “devolver” à mãe-natureza por via diferente da esperada.
Assim foi a “guerra” em que, afinal, o tal “trail” não apareceu. Nesta noite, o “inimigo” permaneceu “escondido” aos olhos de centena e meia de homens e mulheres que o procuraram durante horas a fio. “Inimigo? “Que inimigo?” – Podi-ó chamá-lo!!!???