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segunda-feira, 17 de agosto de 2009

"Peregrinação" a S.J.Lampas

Está a fazer 3 anos, quando li no forum O Mundo da Corrida, um dos mais espectaculares textos que alguma vez li, a propósito da Meia Maratona de S. João das Lampas, escrito pela pena do nosso grande amigo Joaquim Margarido, que nos tinha visitado pela 1ª vez.
É sempre tempo de recordar o que há de bom. Muito obrigado Margarido.
Convido-vos a (re)ler esta preciosidade:



Joaquim Margarido a terminar a 30ª Meia Maratona de S.João das Lampas, ladeado pela Margarida, sua filha e pelo amigo Orlando Duarte

(Do que vi e ouvi em S. João das Lampas, aonde fui por mando d’el-Rei, aqui vos dou conta para que saibais em quão esforçados trabalhos se metem aqueles que afrontam as temíveis rampas, ali postas pelos desígnios do Bendito e para desgraça dos infelizes.)
Aos nove dias do mês de Setembro do ano de 2006, desembarquei em S. João das Lampas, que dista uma légua do Porto do Magoito, onde as mulheres se mostram em parte ou no seu todo, que logo fiquei com a cabeça mui baralhada e com a alma em grande desassossego. E sendo chegado, de pronto me acerquei da fortaleza de que é senhor D. Fernando de Andrade, capitão da terra, o qual, tanto que soube que era chegado, me veio buscar em pessoa, e abrindo-me os braços, me estreitou com sincera amizade, e me mandou entrar para uma espécie de igreja e com cerimónias de cortesia de seu uso me mostrou o vasto espólio de três décadas de sua festa.

E depois de haver já muito tempo que aqui estava, me fui despedir dele e muito lhe aprove que trouxesse um dorsal e me fosse ao terreiro onde, para grande espanto meu e no meio duma grande grita, do céu desciam já homens agarrados como que a uns boletos e o povo em grande animação saudava aqueles homens, e eu, assaz suspenso e pasmado, dei muitas graças a Deus Nosso Senhor que por sua misericórdia os quis salvar tão milagrosamente que se fosse eu me morreria da queda ou ainda antes, que do medo me mijaria a bexiga.

E mui animado com o que vi, logo percebi que já todos se preparavam para a festa que mais não era que correr quatro léguas e um quarto por sítios onde Deus Nosso Senhor nunca andou, nem se atreveria a andar, tão grande a empresa e tão forte o penar, que antes morrer no madeiro que subir e descer caminhos de tão grande desaventurança.

E o Sol caminhava já para o seu ocaso quando um nobre de terras mais a norte, de nome D. Carlos de Lopes, senhor de grandes feitos e de muitas conquistas de ouro, prata e bronze, empunhando um pequeno arcabuz, deu uma salva que logo desataram todos a correr para a frente que mais pareciam gente de briga a fugir do Coja Acém. E em menos de um credo se desapareceram para logo voltarem a aparecer e a desaparecer de novo.

E enquanto aguardava que viessem novamente, por ali me fiquei, e pude ver como esta gente de S. João das Lampas tem por conta estimável o Santo Nome do Altíssimo, que lhe erigiram não pequena igreja e logo em frente uma não menos pequena estátua aonde se representam as gentes em seu devido trabalho. E estando eu preso em meus pensamentos logo se me deu em cismar numa trova que em altos gritos saia dumas caixas negras e que de estranhas falas e não menos estranhas intenções, falava em pôr o carro numa apertada arrecadação de senhora da vizinhança. Que, como é bem sabido, se guardam carros em arrecadações, mas largas, que el-Rei não usa para seus proventos estreito porto e sempre prefere a Doca de Leixões ou mesmo a Barra do Tejo para fazer arribar sua não pequena nau.

Como as minhas indagações de procurar resposta para tão estranho cometimento se mostrassem de todo infrutíferas, regressei ao terreiro da festa onde se anunciava já a chegada dos primeiros com o estrondo dos tambores, bacias e sinos e com as gritas e brados de uns e dos outros, acompanhados do que parecia ser muitos pelouros de artilharia, e de arcabuzaria, e na terra o retumbar dos ecos pelas concavidades dos vales e outeiros, que faziam as carnes tremer de medo.

E logo na frente, um santo cristão, com o nome do Bendito, em cujas pernas parecia haver a força de catorze elefantes, que por Nossa Senhora do Outeiro de Malaca se conseguiu afastar de dois cafres que vinham mais atrás e que arremetendo contra ele, muito ateimavam em pôr-lhe a mão. Destes três e de mais uns quantos, porventura bem poucos, quis Deus Nosso Senhor que chegassem em bom sossego, trazidos por ventos mansos que parecia que nem tinham passado trabalhos tão esforçados. Mas a grossa fileira que os sucedia mais parecia vir da peleja, tão triste e miserável era o estado em que todos vinham, e tão disformes nas figuras dos rostos que metiam medo, e tão fracos que nem a fala podiam bem lançar pela boca. E depois de serem recolhidos e agasalhados o melhor que então foi possível, todos se passeavam por ali como que suspensos e alguns vinham tão arvoados de suas cabeças, que caíam no chão com uns estremecimentos de maneira que por uma grande hora não tornavam em si.

E procurei indagar de tanta desdita ao que um nobre, de seu nome D. Orlando de Duarte, me afirmou que, a ter de penar de novo as penas das malditas rampas, preferia regressar à cidade de Moca aonde havera estado cativo do Soleimão Dragut e ser de novo levado por toda a cidade em modo de triunfo, com grandes gritas e tangeres, onde até as mulheres encerradas, e os moços e meninos lhe lançavam das janelas muitas panelas de ourina, por vitupério e desprezo do nome cristão. E também D. Eduardo de Santos, Administrador de Portal e homem habituado a peregrinações de quase três dúzias de léguas, ali andava às voltas com o olhar parado, não se cansando de repetir: “Sabe Deus quão arrependido eu estou disto!”. Conquanto uma pobre mulher de nome D. Ana de Pereira, chorando com grandes urros implorava que não lhe fizessem mais mal, que era cristã como qualquer de nós, misturando nestas palavras outras bem pouco sensatas e de difícil entendimento sobre uma vaca que jazia morta à beira da estrada.

E até D. Jorge de Teixeira, um nobre senhor dono de muitas festas em seus redutos e conhecido por a si mesmo se designar por “um homem do Norte” e por ter tanto desprezo pela moirama que enxota filhos de Mafamede dos seus palanquins como quem enxota moscas, ali estava posto em grande consternação à vista daquela pobre gente. E tocado também ele pelo dom de misericórdia do Bendito, se apiedou de todos eles e a todos pôs à disposição transporte para que viessem a sua festa aos quinze dias do mês de Outubro, que muito lhe gostaria vê-los e dar-lhes tratos dignos, cobrindo-os com belas roupagens estampadas e coroas de loiros. E todos olhavam para ele com muita desconfiança pois, como é sabido, nos redutos de que é capitão e senhor, o mais que se dá são as fedentinas vísceras dos animais aboiadas num caldo de feijão ao qual chamam de “prato regional”.

Mas ao final, ajuntando-se muito a um lado da igreja, todos louvaram o Santo nome do Bendito que, do meio de todos estes perigos e trabalhos, os tirou sempre em salvo, todos achando que não tinham tanta razão de se queixar por todos os males passados, quanta de lhe dar graças por este só bem presente, pois os quis conservar em vida. E também D. Fernando de Andrade, dando muitas graças a Deus, lhes distribuía não pouco avultados bens que, no seu todo, somavam oito mil taéis de prata, e cinco boiões grandes de almíscar, e muita seda, retrós, cetins, damascos e barças de porcelanas finas. E com isto se despediram uns dos outros, e se recolheu cada um à sua estância, por serem já quase as nove horas da noite, em que o quarto da prima se acabara de render, e os capitães da guarda vigiavam já para que tudo se quedasse conforme ao anterior estado do terreiro da festa. E me recolhi eu também, não sem antes pernoitar nas praias da Ericeira, a cujos banhos el-Rei se rende não poucas vezes em cada Verão.

Por ser isto verdade, vos deixo com este relato e vos exorto a que não desanimeis com os trabalhos da vida, para deixardes de fazer o que deveis, porque não há nenhuns trabalhos, por grandes que sejam, com que não possa a natureza humana ajudada dos favores do divino. E por outra me ajudem a dar graças ao Senhor omnipotente, por usar também comigo da sua infinita misericórdia, apesar de todos os meus pecados, porque eu entendo e confesso que por eles nasceram todos os males que também a mim me atormentam, e dela as forças, e o ânimo para os poder passar, e escapar deles com vida.






Joaquim de Margarido

5 comentários:

joaquim adelino disse...

Olá Fernando.
Parabéns ao meu homónimo Joaquim, é de facto um texto bem Bárbaro cujos Dons estão bem vincados e merecidos.
Em vésperas de nova edição espero que todos estes Lordes se façam comparecer pois gostava de oe conhecer a todos pessoelmente.
Um abraço.

MPaiva disse...

Fernando,

O texto do Joaquim Margarido está simplesmente brilhante! Parabéns ao ilustre senhor que tãos boas razões deu para inspirar tão excelso trovador.

abraço
MPaiva

Anónimo disse...

Amigo Fernando
reli com muito prazer o texto de Joaquim Margarido, genial!
Continuação de bons treinos e até São João das Lampas.

Anónimo disse...

Amigo Fernando
reli com muito prazer o texto de Joaquim Margarido, genial!
Continuação de bons treinos e até São João das Lampas.
Um devoto peregrino.

Joaquim Margarido disse...

Meu caro Fernando:

Muito obrigado pela lembrança duma bela "peregrinação". Se regresso ou não este ano a S. João das Lampas é ainda uma incógnita. Mas se conseguir marcar presença, será apenas para estar aí e dar-te um grande e forte abraço. Para correr - definitivamente! - não será desta.
Abraço.
JOAQUIM MARGARIDO