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quinta-feira, 22 de maio de 2008

O rio da minha aldeia




Por vezes, na procura de novos trajectos que sirvam de cenário a uma corridinha mais descontraída, meto-me por velhos caminhos que, nos meus tenros anos, percorria assiduamente, à descoberta nem eu sabia de quê. (Sabia sim senhor – tinha de levar as ovelhas a pastar!). Nessa altura, todos os caminhos nos levavam a um destino, pois a intensa actividade rural, tornava-os constantemente percorridos. Nem eram precisos grandes cuidados para mantê-los limpos, pois o gado, na passagem, encarregava-se de eliminar a erva, os rebentos das silvas e dos tojos que despontavam, e que assim, nunca viriam a ocupá-los, como hoje acontece."

Também as ribeiras mereciam tratamento idêntico. Os proprietários dos terrenos confinantes com as linhas de água, encarregavam-se de as manter limpas e assim, por muita que fosse a água, dificilmente galgaria do leito que lhe estava reservado. Lembro-me que chegava a haver desavenças porque alguém teria ido “desmoitar” a ribeira na zona pertencente a outro. Claro que desse trabalho se retirava algum interesse económico, pois a lenha resultante era o combustível dos fornos onde, em muitas casas, se cozia o pão.

Ao percorrer trilhos onde há muitos anos não passava não deixa de ser constrangedora a realidade que me entra pelos olhos dentro: ribeiras completamente atulhadas que obrigam a água a correr pelos terrenos ou pelos caminhos; caminhos transformados em ribeiras; paredes de pedra solta que vão ruindo sem que alguém se preocupe em reerguê-las; a paisagem agrícola transformada em matagal; as vinhas onde tantas vezes me “refresquei”...nem sinais delas! …

Tudo isto no Parque Natural Sintra-Cascais que, na prática, não é mais que um eufemismo para designar um “reino” onde “protecção” quer dizer “abandono”.

Quem conheceu este mesmo espaço com outra vida (e não foi assim há tantos anos) não pode deixar de sentir uma certa tristeza perante a situação e interrogar-se sobre o rumo que está a ser seguido.

Durante a corrida, várias foram as vezes em que tive de voltar para trás por ter encontrado o caminho impedido. Mas desta vez não. A água das últimas cheias tinha feito estragos mas ... dava para passar (a pé!). Lá em baixo está a velha ponte romana (ou árabe?) feita de lajes, que atravessa a ribeira, e que ainda se vai conservando, mas cada vez mais ameaçada com a enorme quantidade de lixo que é arrastado e se acumula junto aos pilares para "medir forças". Soube que um senhor que está a tentar recuperar a velha azenha a 30 metros dali, num gesto merecedor dos maiores aplausos, se tinha encarregado, a expensas próprias, da limpeza dos materiais arrastados.

Gostei de ver a ponte e a ribeira e foi neste particular que encontrei, ainda, alguma semelhança com o passado. Parei, fiquei ali um bocado a ver a água a correr e lembrei-me de


O rio da minha aldeia

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda
Para aqueles que vêem em tudo que lá não está
A memória das naus

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal
Toda a gente sabe isso
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem
E por isso, porque pertence a menos gente
É mais livre e maior o rio da minha aldeia

Pelo Tejo vai-se para o Mundo
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)

2 comentários:

Que política em Campolide disse...

Felizmente a “minha” Serra de Monsanto há uns tempos a esta parte tem vindo a ser limpa regularmente - era escandaloso que o não fosse, pois é uma parcela de terreno totalmente do Estado. Assim, esta “minha” realidade não é nada confrangedora! (e não constrangedora)

Um Abraço

Orlando Duarte

Fernando Andrade. disse...

Boa, Orlando !

Gosto de não errar, mas também gosto que me corrijam quando erro."Confrangedora", de facto, é mais aplicável do que "constrangedora", mas, sem querer estar a puxar a brasa à minha sardinha, penso que não é grande a asneira se forem consideradas sinónimas, quando o sentido que queremos dar à frase é de "violentar a paisagem".
"Confranger" é mais no sentido de afligir, atormentar; "constranger" no sentido de reprimir, reduzir, restringir.

Mas o que a língua pirtuguesa tem de interessante é que, mesmo tendo usado a palavra errada, foste "lá buscar a ideia".

E eu tenho de ver se perco a mania de aplicar palavras bonitas para não dar barraca.

Grande abraço, Orlando e continua com essa perspicácia afinadinha.